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José Geraldo Vinci de Moraes

História em Debate

São raríssimas as gerações que tem oportunidade de registrar a passagem de um milênio. Algumas delas presenciaram com inquietude o fim do primeiro e a entrada do segundo milênio do calendário católico. À medida que o ano mil se aproximava, pelo menos o universo cristão foi atravessado por medos e angústias. A população mais humilde e crente esperava o fim do mundo anunciado pelos pregadores. A hierarquia da Igreja tinha outra compreensão dos fatos, mas sabia que ali, na realidade, se anunciava uma mudança na história humana. Todas essas incertezas e mudanças deixaram sinais profundos no imaginário e na compreensão do mundo daquelas gerações.

Nessa nova passagem de milênio vivemos novamente em algumas partes do planeta novos sentimentos de insegurança e angústias, e ao mesmo tempo temos consciência que passamos por profundas mudanças no destino e na história dos homens. Até mesmo as perspectivas e formas de compreensão dessa história têm mudado substancialmente nas últimas décadas do segundo milênio, acompanhando o ritmo geral de mudanças. E nada melhor para compreender algumas dessas transformações gerais e discutir aquelas relativas ao ofício específico do historiadores do que um encontro internacional reunindo um bom número de importantes historiadores de diversas partes do planeta.

Por isso, foi de maneira oportuna que, em Santiago de Compostela, justamente há poucos meses da virada do milênio, entre 14 e 18 de julho de 1999, se discutiu algumas dessas questões no "II Congresso Internacional História a Debate". A primeira reunião, ocorrida em julho de 1993, esteve marcada pelas radicais transformações políticas que se aceleravam no fim dos anos 80 e por uma espécie de balanço das profundas mudanças na historiografia ocorridas desde pelo menos meados da década de 1970. Porém, na realidade, a questão de fundo do congresso naquele momento de agudas transformações, parece ter sido a dupla preocupação com o futuro do ofício do historiador e da disciplina histórica no novo milênio que se aproximava rapidamente, pois naquele momento se anunciava e se discutia o surpreendente "fim da história". Essa questão foi intensamente debatida e se revelou no texto do organizador dos Congressos "Historia a Debate", prof. Carlos Barros (Universidade de Santiago de Compostela), denominado "La historia que viene" que, por sua importância, acabou sendo traduzido em vários idiomas (inclusive português, na Revista de História da Universidade de São Paulo - Brasil, 1o. semestre de 1999).

Se continuamos a acreditar que os historiadores também escrevem e analisam o passado de acordo com sua época, essa segunda edição de "Historia a Debate", além de aprofundar aquelas discussões anteriores, deveria ampliar e, sobretudo, permitir a emergência de novas questões e problemáticas, ecoando as inquietudes dos novos tempos que se desenrolam. Um rápido exame dos temas discutidos nas sessões e mesas redondas, revela essa faceta. Houve, por exemplo, a tentativa de realizar de modo equilibrado, um relativo balanço da historiografia nas últimas décadas do século XX, e com maturidade discutir seu futuro no próximo século. Por isso, temas como "A História no século XXI: novos enfoques", "Balanço historiográfico do século XX", "Crise da história câmbio de paradigmas", "Que historia vamos ensinar no novo século", "Posmodernidade, história e nova ilustração", "Segue a história sendo uma ciência?", etc., foram fundamentais para os historiadores ali presentes aprofundarem as discussões mais candentes e angustiantes. Além disso, temas contemporâneos de interesse específico do ofício do historiador como "Ofício do historiador: sociabilidade, condições materiais e meios de comunicação", "História e discurso, narração e ficção", "Interdisciplinariedade em debate", "Novas tecnologias e a escritura da história", etc, demonstraram a preocupação com a prática da pesquisa e do ensino, com a ação social e ética, com as transformações metodológicas e as incríveis mudanças determinadas pelo avanço tecnológico. A desejável pluralidade temática também esteve presente permitindo de modo sadio a discussão de temas em torno de objetos que ainda sofrem certas restrições acadêmicas, mas que gradativamente ocupam espaço no quadro da historiografia contemporânea. Por isso, foi possível presenciar discussões de temas como sexualidade e política, história das mulheres, a canção popular e conhecimento histórico, análise de filmes cinematográficos, história ecológica, o multiculturalismo, as historiografias poscoloniais, e assim por diante.

O fato de conseguir reunir historiadores de diversas partes do planeta, como China, Estônia, Rússia, Japão, Eslovênia, EUA, Nova Zelândia, Cuba, Finlândia, México, Argentina, Canadá, Índia, Brasil e, claro, um grande número de europeus ocidentais, entre eles franceses e, especialmente, espanhóis. Esse fenômeno foi particularmente importante para retirar certo traço eurocêntrico que ainda permanece nas grandes discussões historiográficas, além de permitir uma troca de informações e impressões culturais e profissionais inestimáveis, próprias do mundo contemporâneo que rapidamente encurta seus espaços e fronteiras. Portanto, como se percebe, esse segundo congresso "Historia a Debate" deu relevante passo no sentido de discutir e retratar o estado atual das reflexões teóricas e metodológicas da historiografia de diferentes países e culturas, e aquelas que são convergentes e próprias do ofício de todos os historiadores.

Por fim, mas não por último, a coordenação do congresso se preocupou com a possível dispersão e decomposição da intensa e produtiva discussão após seu término, fato aliás muito comum nesse tipo de evento acadêmico. Para minimizar essa distorção e os limites antes geralmente impostos pela dificuldade de comunicação internacional, seus organizadores criaram uma rede, ainda que precária e incipiente, na internet que permite a uma parte da comunidade de historiadores um contato permanente, seja por meio de sua home page (https://www.h-debate.com) ou de e-mail pessoal e institucional. Além disso, se prevê a edição de uma revista, "HaD", que muito provavelmente terá sua expressão virtual, na qual a pluralidade e o franco e sincero debate darão o tom principal das discussões. Sem dúvida alguma esses são alguns pequenos, contudo importantes, saltos realizados nesse presente atribulado, que colocam os intelectuais e profissionais que tem como objeto de estudo o passado, na direção evidente do futuro no século XXI.

Resta esperar pela nova edição de "Historia a Debate", prevista para o próximo ano Xacobeo, em que haverá novamente espaço para analisar e compreender esse tempo de incertezas e inquietudes gerais e profissionais na virada do milênio. Se espera que nessa próxima oportunidade se avalie os avanços alcançados pelos historiadores e por nossa disciplina nos primeiros anos do novo século que se aproxima. E bem provavelmente essa avaliações deverão estar marcadas pelas gerações que tiveram a rara experiência de presenciar a virada de mais um milênio.

José Geraldo Vinci de Moraes
Professor Doutor de História da Universidade Estadual Paulista - UNESP, São Paulo, BR. Autor de "Metrópole em Sinfonia. História, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30", Ed. Estação Liberdade, SP, "Conversa com Historiadores Brasileiros", Ed. 34, SP e "Sonoridades Paulistanas. A música popular na passagem do século", Funarte, RJ.
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